Dois
Duas horas antes...
Lá
em cima, no palco, os outros formandos nos aguardavam com cara de defunto. Eles
se pareciam com Daniel... e comigo, percebi. Todos nós estávamos vestidos de
toga preta com aquela faixa azul na cintura.
Quando nos juntamos ao restante da
turma, o mestre de cerimônia me encarava com um sorriso notavelmente falso de
quem não gostara nem um pouco do atraso. Ele limpou a garganta com um pigarro
longo e alto para que os convidados da formatura – parentes e amigos mais
chegados – prestassem-lhe a devida atenção. Meus pais estavam na terceira
fileira de assentos. Mamãe, sorridente como sempre, esbanjava jovialidade,
mordendo o lábio inferior, ansiosa. Por um momento, imaginei que fosse gritar
para todos que eu era o seu filho, evitei encará-la a fim de não encorajá-la a
isso. Ao seu lado, papai consultava o relógio de pulso o tempo todo, com ar
totalmente entediado.
Quanto a mim... Bem, eu desenterrava um
esforço sobre-humano para demonstrar que o dia em questão estava sendo um dos
mais felizes da minha vida. Porém, tudo era uma catástrofe. Completamente
inerte naquele ambiente estranho, o que apenas consegui foi recordar-me do
sorriso contagiante que Samuel expressou ao receber a colação de grau, na sua
formatura. Em seguida, meus pensamentos se tornaram difusos e tristes. Então me
lembrei de como as rosas brancas pareciam flutuar sobre o caixão já adormecido
ao sepulcro, onde meu irmão mais velho fora destinado a passar toda a
eternidade... Droga, ele odiava rosas.
No enterro, mamãe acariciava meus
cabelos enquanto se acomodava no peito de papai, que permanecia totalmente
inexpressivo. Samuel faleceu há três anos, no dia posterior a sua formatura,
quando completara vinte e um anos de idade. Ele saiu no meio da sua festa com
um homem misterioso, mas não retornou para casa. Seu corpo foi encontrado na
manhã seguinte por campistas, em um bosque nos arredores da cidade. Seu rosto
estava irreconhecível, havia perfurações, marcas como as de mordidas, no
pescoço, braços, tórax e costas; por onde, segundo o legista, todo seu sangue
fora escoado ou drenado. Ainda não satisfeitos, os psicopatas retiraram toda a
pele do seu corpo, e assim como os dedos de Samuel, os assassinos nunca foram
encontrados.
Eu estava lá com ele naquela noite,
naquele jardim. Conversamos, bebemos e nos despedimos quando o provável
suspeito apareceu nas sombras. Samuel estava diferente, eu podia sentir. Seu
rosto trazia uma espécie de medo e ansiedade, como se ele soubesse o que estava
por vir. Mas, por que não evitou? Por que ele me abandonou assim? Será que não
pensou na dor que me causaria ao me deixar sozinho no mundo, sem seus cuidados
e carinho de irmão mais velho? Eu o amava com a vida. E mesmo sabendo do meu
sentimento, no final, ele ainda se certificou de que fosse eu a vê-lo pela
última vez. Agora eu o amava e odiava.
— É com grande satisfação que dou início
à entrega de diplomas dos formandos de hoje – entoou o reitor com a voz firme,
tirando-me naquela hora do torpor de pensamentos que me dilacerava o peito,
tomando a palavra que lhe fora gentilmente cedida pelo cerimonialista. –
Acompanhar o trabalho duro dos alunos aqui presentes, nos últimos anos, foi
muito gratificante e empolgante, devido à capacidade criativa e inovadora
exercida por eles. São atos assim que engrandecem o nome de nossa Universidade
e nos fazem orgulhosos da carreira a qual optamos seguir.
Daniel me cutucou na parte do
gratificante e empolgante, fazendo um gesto com as mãos, algo que lembrasse um
desentupidor de pias. Segurei uma risada ao me lembrar de quando os cento e quarenta
quilos do reitor ficaram entalados na cadeira, enquanto ele assistia à
apresentação de nossas monografias. Culpa
das rosquinhas diárias, pensei.
Ele nos olhou de soslaio, talvez se
lembrando do mesmo episódio, e corando desconsertado.
Em seguida, em uma indireta
“diretamente” dirigida a nós, acrescentou:
— Claro que sempre tem aqueles que
preferem a brincadeira, ao invés de se dedicarem à responsabilidade que lhes
aguarda no futuro. – Ele não disse isso. Sim, disse! – Bem, é isso! Parabéns
aos formandos, hoje já formados.
O mestre de cerimônia, com ar
introspecto e austero, retoma a palavra:
— Quero chamar aqui o orador da turma.
Paulo Schimdt, a palavra é sua.
— Deveria ser eu – resmungou Daniel.
— Ainda não superou isso? – indaguei em
tom jocoso – Ele tem a melhor nota da turma.
—
Esse cara pode até ter se tornado um nerd
de carteirinha, mas, para mim, ele ainda continua sendo o mesmo babaca de
sempre.
— Pode até ser, mas precisa admitir que
ele é bom. Passou a perna em você direitinho.
Daniel me olhou enrugando o cenho. Pude
perceber suas bochechas corando.
— Dá um desconto ao cara. Ele salvou a
nossa monografia – finalizei vitorioso. Daniel ameaçou contestar, mas preferiu
consentir em silêncio. Levantar a questão do quanto fora persuasivo com Paulo,
ameaçando-o de levar a público algum segredo macabro, do qual jamais tive
conhecimento, seria o mesmo que cutucar no estrume com vara curta, presumi.
— Boa noite, galera, galerinha e
“galeria”, o sonho de consumo de todo engenheiro... ops, isso é do curso de
artes – brincou Paulo ao iniciar seu discurso. Todos rimos, exceto Daniel,
petrificado ao meu lado. Paulo pigarreou. – Quero falar algo muito sério agora
– continuou ele, fechando a cara em um silêncio detestável, e todos nós
instintivamente o imitamos. – É com grande pesar que anuncio... ou melhor, que
revelo publicamente...
Houve um silêncio geral. O reitor, assim
como os outros membros da comissão, remexeu-se na cadeira, gélido e sério, com
algo de amedrontamento na expressão, pois seus lábios estavam brancos e
pareciam tremer. No entanto os olhos de Paulo pousavam pesarosos sobre mim. Não
entendi.
Nem entendi meu melhor amigo, que, ao
meu lado, não precisou plagiar o gesto, pois a mesma feição vinha sendo natural
em seu rosto, desde que Paulo pegara no microfone, com exceção de demonstrar,
junto à irritação, medo.
— Merda – ele balbuciou.
— Quê? – perguntei,
Daniel não disse nada, apenas fitou a
saída mais próxima, como se estivesse calculando a distância e o tempo que
levaria para chegar lá se saísse correndo.
— Rá...
– gritou o orador. Daniel e o reitor se olharam com o susto e Paulo
pareceu se divertir com aquilo. – Convenci vocês com minha atuação, não foi?
Esse sempre foi o sonho de papai, que eu me formasse em “Artes Cênicas”. Não?
Errei de curso novamente? – Um rompante de risos surgiu da plateia. O reitor
pegou um lenço do bolso e enxugou o suor da testa, aliviado, ou ainda mais
nervoso, eu não soube discernir. – Hã? Essa formatura é de Engenharia? Onde
estou com a cabeça, meu Deus? Na lua? Bem, para isso, teria que ter estudado
“Astronomia”, não é? – Risos novamente. A plateia e os formandos estavam se
divertindo com as palhaçadas de Paulo. Com exceção do reitor e meu amigo.
Paulo
caminhou até a frente do palco.
—Agora
é sério, pessoal – continuou. – Construir é um ato que precisa ser muito bem
calculado e administrado, assim como a carreira que optamos seguir. Valorizar e
reconhecer o que temos de melhor é imprescindível para que sejamos seres
humanos eternos. Esse momento que hoje temos o privilégio de experimentar é uma
daquelas ocasiões ocorridas em nossas vidas de que jamais nos esqueceremos. –
Paulo virou-se para o reitor e professores. – É uma enorme alegria da qual, com
certeza, vocês, professores, igualmente fazem parte. Não apenas de nossas
histórias pessoais, mas da trajetória até aqui percorrida por todos. Em nome de
todos os formandos, quero agradecer pela amizade e respeito prestado a nós, ao
longo do curso, e não somente por isso, mas por nos ter proporcionado a
ampliação dos nossos conhecimentos e experiências de vida diária, com a qual
crescemos humanisticamente ainda mais. Deus os abençoe sempre; e que tenhamos a
oportunidade de transformar, para melhor, o mundo por meio de nossa profissão!
Paulo
terminou, deixando todos boquiabertos com suas palavras. Helena, a professora
paraninfa do curso, nossa madrinha de formatura, enxugava as lágrimas que lhe
borravam a maquilagem exagerada.
Sabrina,
a aluna escolhida para ser a juramentista da turma, pegou o microfone,
alcançado pelo orador. Erguemos todos os nossos braços direito, imitando-a.
—
Prometo – começou ela –, no exercício das funções de engenheiro, só executar
atos ditados pela consciência do meu dever, honrar os ensinamentos que recebi,
cooperar sempre para o desenvolvimento da ciência, e fazer tudo quanto em mim
couber pela grandeza moral, social e material do Brasil.
—
“Assim Prometo!” – Respondi juntamente com o restante dos formandos, gerando um
coro uníssono.
A
cerimônia foi finalizada logo após a entrega do diploma simbólico. Meus pais me
aguardavam para todo aquele clichê de “parabéns, você mereceu” e fotos
intermináveis. Mas eu tinha pressa e um plano, então evitei a multidão
alvoroçada no pé do palco e me dirigi até a porta, na lateral do salão.
Assim
que atravessei a porta, uma mão forte me puxou para um canto, era Daniel. Ele
estava eufórico e sorridente, nem parecia aquele mesmo jovem irritado, de
instantes atrás, durante o discurso de Paulo. Não se contendo, ele me contou o
que deveria ser uma surpresa a ser revelada na festa que seria realizada dentro
de algumas horas.
—
Não era para eu te contar agora, mas não estou me aguentando – disse ele sem
respirar. – Estou namorando... a Mariana Villaça.
Não
acreditei. Daniel e Mariana, a garota mais sexy e atirada da turma, juntos?
—
Não acredito – eu disse surpreso, ou melhor, perplexo. Ele deu de ombros.
—
Digamos que ela abriu os meus olhos e me fez enxergar a vida de uma forma
ampla, meio que eternal...
Contive-me
para não rir alto na hora do “eternal”. Não que meu amigo não fosse capaz de
conseguir namorá-la, mas poxa, era da Mariana Villaça que estávamos falando.
Ela não era mulher para ele, para ninguém. Além do mais, havia um boato na
faculdade de que metade dos alunos e professores, incluído os do sexo feminino,
já havia saído com ela. Bom, se bem que nunca ninguém teve coragem de comentar
sobre isso. E também eu conhecia o meu amigo, ou achava que conhecia? De
qualquer maneira, eu não gostava dela.
—
Tá bom, quase me convenceu. – Ele fechou a cara e me fuzilou com os olhos. Meu
Deus, ele estava falando a verdade. Daniel apaixonado por uma garota, por
aquela garota... – Certo. Você e Mariana... juntos. Isso é lindo – menti. –
Acho que ela vai te fazer muito feliz.
Com
o sorriso brilhando novamente em seu rosto, ele me deu a notícia do ano. E sim,
o namoro dele não era essa notícia.
—
Mas essa não é a melhor parte – comunicou animado – Mariana vai levar uma amiga
na festa, uma amiga de longa data. – Ele me segurou pelos ombros. – E
adivinha...
Ergui
uma das sobrancelhas.
—
Que vocês farão um Ménage à Trois? – eu disse extasiado.
—
Não, claro que não. A garota quer te conhecer.
Mariana
e Daniel estarem juntos era algo com que eu podia lidar, mas quererem arrumar
um encontro para mim? Por favor, isso já era abuso.
—
Não e não. Nem pensar que irei a um encontro às escuras.
—
É mesmo? Então me diz quando foi a última vez que você teve um encontro,
Geisel? Quando tinha quinze anos? Além do mais, não será bem um encontro às
escuras. Mariana só irá te apresentar a ela na festa, de forma casual, sem
compromisso. – Ele me olhou com o mesmo olhar suplicante que o Gato de botas
usara para persuadir Shrek no filme. – Por favor, cara.
Bem,
nem se eu insistisse de joelhos conseguiria dissuadir Daniel a desistir daquela
ideia absurda. Então, tudo que respondi foi:
—
Sem compromisso.
Ele
cruzou os dedos, beijando-os em sinal de juramento e, depois, deu-me um abraço,
dizendo que eu era um bom amigo e que ficava me devendo essa. Mais essa, eu
pensei, olhando para o corredor que se estendia a nossa frente. No final dele
estava a porta que eu desejava alcançar, a passagem para o estacionamento, mas
eu simplesmente não podia dispensar Daniel sem uma explicação plausível sobre a
minha presença ali e não junto com os outros formandos e suas famílias. Até
então eu estava com sorte, ele nem se dera conta desse detalhe.
Pelo
menos não por muito tempo.
—
Aonde você está indo? – perguntou-me ele. – Por que não está lá dentro com os
outros?
—
Eu...
O
telefone de Daniel tocou bem na hora. Salvo pelo gongo, ou melhor, salvo pelo
celular.
—
É ela – disse ele, animado. – Espera aí que já volto. Preciso atender.
Não
esperei. Assim que meu amigo se afastou, saí para o estacionamento onde estava
o meu carro.
***
—
Depois só me lembro de ter dirigido até aquele posto de gasolina – completei.
—
Mas você não se lembra do motivo da pressa, quero dizer, sobre sair da
formatura sem nem antes falar com seus pais, ou do porquê de ir parar
justamente no banheiro de um posto de gasolina? – ele perguntou, virando a
esquina. O portão do condomínio Germain, onde eu morava com meus pais, ficara
para trás.
—
Eu já disse. Talvez eu só quisesse tomar um ar. Sei lá, espairecer a mente um
pouco. Um dia como hoje é muita pressão para a minha cabeça – fui sincero. – Se
não fosse por meus pais, juro que não iria a essa festa de formatura.
—
E quebrar a promessa que me fez?
—
Que promessa? – brinquei.
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