Cristiano Reis...


Três

Logo na entrada da choperia, uma faixa de BEM-VINDOS FORMANDOS – 2013, posicionada acima da porta dupla, recepcionou-nos com uma variante de cores, o que me fez lembrar a menção à galeria de artes citada no discurso de Paulo.
Daniel e eu seguimos pela lateral do prédio, direto para o estacionamento principal. Assim que desembarquei do carro avistei um portão de grades altas e pontiagudas, aquele era o outro acesso da casa de festas que dava no jardim, mas este agora estava lacrado por pesadas correntes de aço. De repente o passeio, de pequenas pedras brancas e roliças, que levava até o chafariz rodeado de árvores, gramas verdes, e... rosas, surgiu vívido na minha mente. Aquele lugar me assombrava.
O ambiente reservado para o bufê ficava logo depois dos seguranças na recepção. Eles certificavam-se de que nenhum engraçadinho penetrasse na festa armado ou com drogas. Um exagero para muitos, mas não para mim, não naquele lugar.
— Será que realmente é necessária toda essa precaução? – Daniel perguntou à mulher que estava vestida igual aos outros seguranças: de calça de alfaiataria preta, camisa branca, e paletó bordô. Ela deu de ombros, expondo um sorriso artificial.
— Depois do incidente de dois mil e dez, o dono resolveu investir mais na segurança – disse ela. Entreguei-a meu convite e ela me retribuindo com uma carimbada na parte de baixo do pulso, visível apenas à exposição de luz ultravioleta.
— Que incidente? – Como se não fosse óbvio.
— Do caso Castelamare.
Meu estomago embrulhou novamente.
— Mas o que a choperia teve a ver com aquilo?
Tudo a ver, eu pensei, ficando irritado. Tudo começou aqui, com Samuel saindo no meio da festa com um estranho que nunca fora encontrado ou identificado. Mesmo em meu relato, na época, declarando que meu irmão o acompanhou por vontade própria, a polícia acreditava que ele fora sequestrado. Foi um período bem difícil para mim e minha família. E para contribuir com o nosso tormento, a frente do condomínio vivia lotada de repórteres e pessoas curiosas, vasculhando a nossa vida.
De qualquer forma parecia que os fantasmas do passado resolveram voltar para me assombrar. E também não gostei nem um pouco do fato de Daniel se portar de forma indiferente ao caso. Nem de ter insistido no assunto. Poxa, tratava-se do meu irmão. Será que era tão difícil assim entender?
— O suspeito que saiu com a vítima daqui não era um dos convidados e, mesmo assim, ele conseguiu livre acesso. – O pulso de Daniel foi carimbado. – Desde então o portão lateral, que dá acesso ao jardim, foi lacrado e a vigilância tornou-se mais rigorosa em eventos como esse. Agora temos câmeras por toda a parte – finalizou ela, com o mesmo sorriso forçado. – Divirtam-se, garotos.
Seguimos pelo tapete que atravessava a sala, compondo um corredor estreito e vermelho. As mesas redondas, com lugares para quatro pessoas, distribuíam-se nas laterais. A decoração do lugar não era exagerada como imaginei que fosse ao visualizar a faixa de boas-vindas na entrada. Cortinados, branco-pérola, ornavam as paredes de forma suave e alegre. Não consegui distinguir a música que estava tocando, ela era abafada pela conversa agitada dos convidados. As garçonetes, também vestidas com roupas formais – porém, brancas, com exceção da gravata borboleta bordô – pareciam bailarinas no gelo, circulavam por entre as mesas, manuseando com destreza as bandejas carregadas de salgados ou bebidas. À minha direita, uma mesa estreita e comprida estava repleta por frutas variadas e recipientes de vidro transbordando de balas e chocolates.
— Aqui, filho! – A voz aguda e escandalosa de mamãe tinha o poder de abafar qualquer som, e derrubar qualquer um que ousasse atravessar seu caminho.
Avistei-a de pé, ao lado da mesa reservada à minha família, com os braços erguidos, agitando-se freneticamente de um lado para o outro. A cena era de dar inveja àqueles bonecos infláveis na frente dos postos de conveniência. Torci para não ter nenhum dono desses estabelecimentos na festa, poderiam confundi-la com um e querer levá-la embora. Papai, dentro de terno Armani, gentilmente cedido pelo pai de Daniel – já que não mais o usava – e Mariana, vestida com um casaco preto longo, cobrindo-lhe todo o corpo, tinham suas cabeças abaixadas, fingindo não estarem ali.
Sobre cada mesa, a foto de um formando indicava a reserva de cada família correspondente a ele. Na minha havia duas fotos, a minha e a de Daniel, já que seus pais não puderam comparecer à formatura por motivos maiores. Mas ele sempre fora da nossa família, mesmo antes de seus pais se mudarem para o exterior, há alguns anos. Daniel vivia mais lá em casa do que na própria residência que ficava no mesmo condomínio Germain. Seu pai, Sérgio Amaral Barteles, era um excelente financista consultor executivo na MUNDIAL RICH. Na época, ele foi transferido para Madri, na Espanha, justamente pelos seus atributos e competência profissional e acabou levando toda a sua família, mas meu amigo até que tentou viver fora do Brasil, porém não se adaptou. Ele ficou morando na mesma casa em que seus pais viviam, sobre a supervisão dos meus pais, claro.
— Minha mãe já sabe sobre você e Mariana?
Uma garçonete passou por nós com uma bandeja cheia de drinks variados. Eu recusei. Daniel não, ele pegou um drink chamado Lagoa Azul.
— Ela desconfia. Na verdade, ela até disse que Mariana foi feita para mim, acredita?
— Sei. E aposto que eu fui a última pessoa da sua lista de confidentes.
— Não foi não. Foi o penúltimo. A última é o meu urologista.
Uma garota que vinha distraída esbarrou em Daniel, e o líquido azul do copo dele veio na minha direção, mas eu fui mais rápido, desviando-me a tempo.
— Ai, meus Deus – foi tudo o que ela disse, antes de paralisar.
Fiquei em dúvida se a sua reação de espanto fora resultado do choque, da bebida desperdiçada ou do meu reflexo. Meu amigo, e mais meia dúzia de pessoas a nossa volta mantinham os olhos em mim, com a mesma expressão no rosto. Foi então que eu percebi que o copo que Daniel carregava, também escapara de suas mãos e inexplicavelmente eu o mantinha equilibrado em um dos pés.
Aquele dia, ou melhor, aquela noite estava se tornando esquisita demais. Primeiro o apagão, depois o surto na rodovia e agora eu estava fazendo malabarismo com os pés. Dá para acreditar? Sem contar a sensação estranha em mim, ao me aproximar da mesa onde meus pais e Mariana estavam sentados. Foi quase como uma tontura leve. Não, era mais como um mal-estar seguido de um arrepio, mas a sensação logo passou. Temendo dar um vexame na frente dos meus colegas, principalmente dos meus pais, resolvi que ficaria mais atento ao meu comportamento, que tentaria me vigiar da melhor maneira possível. Cheguei até a pensar que talvez fosse uma espécie de sinal, um aviso de que algo ruim estava por vir, mas eu não acreditava nessas coisas de superstição, então descartei essa hipótese.
— Então ele esticou a perna no ar, aparando com o pé o copo, enquanto ao mesmo tempo contorcia o corpo para se desviar do líquido – Daniel contava animado o meu feito, pela terceira vez, reproduzindo os gestos, ou pelo menos tentando fazer o mais parecido possível. Ele abriu os braços e fez uma careta de suspense – E buuum. Todo mundo parou de repente, os olhos deles brilhando ao contemplar o craque.
— Que exagero, Dani – disse Mariana, pondo-se de pé. Concordei com ela, Daniel sempre dava às coisas uma proporção muito maior do que realmente eram. – E, olhos brilhando ao contemplar o craque? Fala sério. Todos nós sabemos que Geisel não possui nenhuma habilidade com os pés.
Isso não é bem verdade. Só porque dei umas bolas fora nos jogos que participei no time da faculdade, não quer dizer que sou um total perna-de-pau.
— Tanto é que ele passou o ano no banco dos reservas do time da faculdade. Fracasso total – Ela sorriu vitoriosa. Juro que vi uma pitada de sacarmos naqueles lábios perfeitos.
Mamãe fuzilou a garota com os olhos. Não era nenhuma novidade que ela e eu não nos entendíamos muito bem, mas ela também não precisava soltar seu veneno na frente dos meus pais. Bem, só na frente da minha mãe, porque papai estava em outro universo, ele sorria para ela com cara de bobo. Que cara de pau, eu pensei. Mas não o culpei por isso, Mariana causava esse efeito nos homens. Eu mesmo já me vi vítima do mesmo feitiço.
— Bom, agora que a família Castelamare está reunida, deixe-me voltar para a minha – disse ela. – Com licença. – Mariana deu um beijo em Daniel. – Depois nos falamos, meu anjo lindo. 
Assim que ela deu as costas, afastando-se toda pomposa, arrancando olhares maliciosos daqueles por quem passava, meu amigo puxou a cadeira e sentou-se à mesa, vermelho como um pimentão.
— Ela não é mulher para você, Daniel Barteles. – declarou mamãe, com um bico imenso.
Vixe, ela chamou Daniel pelo nome completo. Isso não era bom sinal, mas, embora eu concordasse plenamente com ela, precisava defender meu amigo da fúria Carmem. Ele faria o mesmo por mim.
— Ela é uma boa pessoa, mãe. Só é um pouco invasiva, às vezes, mas quem não é? Dá um desconto para a garota.
— Quem não é o quê? – manifestou-se o cara de pau do meu pai, voltando do transe Mariana.
Dona Carmem fechou a cara, fazendo questão de transparecer que estava entediada com o comportamento inadequado de papai. Pelo menos Daniel pode respirar. Ele não estava mais na mira dela. Eu até que me diverti, um pouco.
— O que estamos falando aqui – respondi – é que devemos nos encaminhar até o Self-Service, antes que não reste mais comida, ou dentes.
Antônio, meu pai, não entendeu a analogia, mas se animou com a ideia da comida.
— Então, vamos logo.
No caminho para o bufê, Daniel me puxou pelo braço, para que ficássemos mais atrás, longe da audição aguçada de Dona Carmem.
— Geisel, eu sinto muito pelo...
Eu ergui a mão, para que ele não continuasse.
— Você não precisa fazer isso. – Tentei parecer o mais casual possível. Embora, por dentro, estivesse me sentindo chateado com o que Mariana falara. Mas eu já estava acostumado com as indiretas dela. Aquela não foi a primeira vez e nem seria a última. – É natural. Ela estava com ciúmes, por você não lhe ter dado tanta atenção quanto ela gostaria de receber.
Foi uma atitude boba e infantil da parte dela, já que a situação não causava nenhum perigo real ao relacionamento deles, ou ao sentimento dele por ela. Pensei seriamente no assunto. Aquele comportamento era, na verdade, uma exteriorização da necessidade de atenção e posse que ela cultivava em seu interior. Meu irmão era assim comigo, mas no caso dele era a superproteção exagerada. Qualquer pessoa que se aproximasse de mim significava perigo eminente, o que me resultou uma vida quase solitária na infância. Samuel também nunca gostou de Daniel, nem de ninguém que vivesse no condomínio, com exceção de uma garota: Elisa Barteles.
O rosto de Daniel se iluminou.
— Esse ciúme repentino só significa uma coisa: Mariana Villaça me ama de verdade. – Bem, quanto a tal certeza do meu amigo eu tinha minhas dúvidas. – Valeu por defendê-la.
— Você teria feito o mesmo por mim.
Ele balançou a cabeça, negativamente.
— E enfrentar a fúria de Dona Carmem? Nem pensar.
Pensei em protestar, mas o celular de Daniel me interrompeu novamente. Após me mostrar o nome do seu pai no visor, afastou-se, dirigindo-se até a saída, em busca de um local mais silencioso para atender a ligação.
Embora seus pais vivessem em outro país, mantinham um contato constante com ele, ligavam regularmente para se certificarem de que estava tudo bem. Daniel havia me contado que eles viriam para sua formatura, que chegariam na sexta-feira. No entanto, tiveram que cancelar a viagem, mesmo com as passagens compradas. Ele explicou por alto que a empresa em que seu pai trabalhava fora assaltada, fazendo com que os planos fossem frustrados. Então, apenas Elisa, a irmã caçula, viria. Porém, parecia que o azar estava mesmo rondando Madri. Uma ameaça de bomba no aeroporto fez com que o voo de Lisa fosse adiado para o dia seguinte.
— Geisel, é verdade que você fugiu no final da cerimônia? O que aconteceu, amarelou, foi?
Virei e me deparei com Paulo, atrás de mim, na fila. Ele estava com dois amigos, Thiago Farias e Cristiano de Oliveira, do curso de Engenharia Elétrica. Os dois carregavam o título de “cdfs idiotas” da faculdade. Embora todo mundo os odiasse, eu nunca tive nada contra nenhum dos dois, mas naquele momento resolvi reconsiderar minha opinião, já que me olhavam com cara de deboche. Paulo se ajuntara a eles no último semestre e, pelo que deu a entender, tornara-se seu líder.
— Não sei quem te contou esse absurdo, mas você é livre para pensar o que quiser. – Fui me virando, mas Cristiano resolveu dar o ar da graça.
— Sabe como esse povo é malvado, comenta muito. Outro dia mesmo, no campus, ouvi dizer que depois que seu irmão foi assassinado, você enlouqueceu, que tem tido ataques de pânico regularmente.
— Ataque de pânico? – Meu sangue começou a ferver. Será que todo mundo sentia prazer em tocar na minha ferida? Primeiro pensei em ir para cima dele e mostrar o quanto eu havia enlouquecido, mas agir assim só sustentaria a sua acusação. Cogitei então que apenas daria uma resposta à altura, mas então me lembrei do surto que tivera mais cedo e, realmente, Paulo estava certo, embora eu não me lembrasse do motivo real de ter saído à francesa ao final da formatura, a minha atitude poderia, naturalmente, ser considerada um ataque de pânico. Caramba! Que situação! Escolhi cuidadosamente as palavras seguintes:— Vocês não deveriam acreditar em tudo que escutam por ai.
Paulo me olhava de um jeito que parecia estar me analisando. Procurei manter-me tão calmo quanto era possível.
— Ninguém está dizendo que acredita, Geisel. Alias – ele olhou o ambiente em volta – não foi neste local que seu irmão foi sequestrado, antes de... – Paulo interrompeu a fala. Eu gelei. Ele continuou: – ...arrancarem todo o couro dele?



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